Falar Música
Artigo de Opinião pelo Professor Paulo Cunha, publicado em Algarve Informativo #371
Quando, a meio da primeira semana de aulas do segundo período escolar, recebi da diretora de turma Carla Gago uma mensagem, informando-me que tinha sido integrado na turma um aluno ucraniano que tinha chegado a Portugal com os seus pais, na condição de refugiados, e que o mesmo não falava nem escrevia qualquer outra língua para além da sua língua materna, senti o misto de sensações que todos os meus colegas devem ter também experienciado.
Saber que o iria ter na sala de aula no dia seguinte durante duas horas, sem com ele poder comunicar, tendo de usar apenas a universal mímica, seria desafiante, mas, ao mesmo tempo, confrangedor e, possivelmente, frustrante para todos os intervenientes.
Vê-lo parado no meio da sala, sem saber o que fazer e com um olhar totalmente vazio e perdido, fez-me ter de utilizar todos os recursos que a minha imaginação então providenciou. Já devidamente sentado, apresentei-o, mais uma vez, à turma, lendo em voz alta o seu nome, caracteristicamente ucraniano, para que sentisse que o seu ser pertencia também àquele espaço. Explicando a pré-adolescentes o que é hoje ser refugiado, tentei que entendessem também que ao contrário da colega nepalesa que, pelo menos, comunicava em inglês, este apenas o fazia em ucraniano.
Fruto de quatro décadas a lidar com situações inusitadas e inesperadas enquanto professor, em boa hora me lembrei que poderia dar as boas-vindas ao novo aluno através da música e, ao mesmo tempo, contextualizar e explicar a sua atual situação à turma onde foi inserido. Para tal, tive apenas de perguntar ao coletivo se sabia qual tinha sido o país que tinha ganhado o Festival Eurovisão da Canção 2022. Embora poucos alunos tenham visto o concurso através da tv, quase todos sabiam que tinha sido um grupo ucraniano a ganhá-lo (Kalush Orchestra). Procurei o vídeo oficial da canção ganhadora (Stefania) e sem qualquer explicação adicional projetei-o para a turma.
Ver a atenção e o interesse com que mais de vinte almas dividiam as imagens baseadas em acontecimentos reais com a reação do novo colega foi um momento único e irrepetível. No final, bastou-me apontar para o ecrã e com o polegar questionar se tinha gostado. Foi então que se registou um momento mágico e encantador. Observar o seu sorriso franco e sincero de orelha a orelha enquanto abanava afirmativamente a cabeça, acompanhado pelos olhos de alguns colegas lacrimejando, deu-me a plena noção que aqueles cerca de três minutos de música tinham constituído a melhor receção e apresentação que a sua nova turma lhe poderia ter feito no seu primeiro dia de aulas presenciais em Portugal. E foi assim que símbolos escritos e posteriormente interpretados e cantados em ucraniano se transformaram em linguagem musical, dando azo a que numa mesma sala se comunicasse através da música.
Partindo da ideia de que “a música é a linguagem universal da humanidade”, expressa há cerca de duzentos anos pelo escritor norte-americano Henry Wadsworth Longfellow, uma equipa de investigadores de Universidade de Harvard quis perceber se, de facto, existem pressupostos que tornam a música uma manifestação cultural transnacional. Durante cinco anos pesquisaram centenas de gravações fonográficas em vários suportes, em bibliotecas, arquivos, coleções públicas e privadas e reuniram cinco mil entradas de canções representativas de sessenta culturas etnograficamente diferentes, abrangendo trinta regiões do planeta. Analisando os dados, em diferentes pressupostos técnicos, literários, mecânicos e interpretativos, os investigadores perceberam que há uma base comum na música que é composta e escutada, independentemente do ponto geográfico.
Naturalmente, concordo com as teses dos investigadores Manvir Singh e Samuel Mehr que através dos resultados obtidos na investigação realizada sustentam que qualquer cultura humana é construída a partir de uma base psicológica comum e isso influencia a música que é criada (associada a comportamentos como cuidar, curar, dançar, amar, fazer o luto e lutar), podendo assim suportar uma «gramática da música» universal. Assim sendo, é caso para desejar: “Que a música nos una a todos, sem exceção. Sempre!
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