Alunos surdos, oriundos de toda a região algarvia, deslocam-se a Faro para terem aulas na escola. Os que ficaram em casa são acompanhados pelo telefone ou por video-chamada. Mas, no caso destas crianças, a presença é mesmo indispensável dizem os professores.
Idálio Revez (Texto) e Rui Gaudêncio (Fotografia) Jornal Público 8 de Março de 2021
Alexander levanta-se antes das 6h da madrugada para ir à escola, em Faro. Desde casa, em Aljezur, até à capital algarvia, percorre 120 quilómetros, e faz outros tantos na viagem de regresso. O aluno, de 11 anos, filho de pai holandês e mãe neozelandesa, é surdo profundo desde o nascimento. “A aprendizagem online, nestes casos, não resulta.” A razão é explicada pela professora Raquel Antunes: “Eles precisam de ver todos os pormenores das expressões faciais.” Além disso, acrescenta, “o calor humano e a empatia, não se transmitem por computador”. Na escola da Penha, onde se ensina a comunicar por gestos, o sucesso da aprendizagem assenta em grande parte nas relações que se vão construindo.
“Alex”, tal como os colegas, tem dois nomes próprios. Alexander figura no cartão do cidadão, o outro, “sardinhas”, deriva das pintas no rosto. “São os alunos que escolhem os nomes”, explica Raquel Antunes, que usa uma máscara acrílica transparente. “Facilita a comunicação.” Os alunos têm necessidade de ter uma leitura completa dos lábios, para perceberem o que dizem os outros. Nas subtilezas da expressão facial, explica a docente, pode estar a diferença entre uma frase proferida na afirmativa, interrogativa ou exclamativa.
Cerca de dezena e meia de alunos frequentam as aulas presenciais. No total são meia centena. Os restantes, diz o director escolar, Carlos Luís – responsável pelo agrupamento das escolas João de Deus -, ficaram em casa, por opção dos pais. Porém, com o primeiro confinamento, todos aprenderam uma lição: o ensino à distância, nestes casos, “torna-se muito mais difícil”. Além disso, prossegue Raquel Antunes, a comunicação digital, nalgumas zonas do interior da região, ainda é deficiente. “Por vezes, a imagem chegava com cortes e tudo se complicava”. Quando ocorria uma interrupção, recorda, os pais, em casa, ficavam sem saber o que fazer.
O professor de língua gestual, José Cardoso, anuncia à turma: “Temos a visita dos jornalistas do PÚBLICO.” Os olhos de Diana sorriem. A menina de dez anos, vinda de Tavira, redobra a atenção. “Bandolete” é o seu outro nome, por usar muitas vezes esse adereço no cabelo. Se há alunos que não dizem qualquer vocábulo, outros ainda conseguem ouvir qualquer coisa e articular palavras com a ajuda de implantes cocleares.
“Tenho pais que me telefonam a qualquer hora, aflitos, perguntando: o que diz o meu filho, que eu não o entendo? ” Raquel Antunes, professora
João, que vem de Vila Real de Santo António, perdeu a audição na sequência de uma intervenção cirúrgica à cabeça. Na sala dos “gatinhos” a professora Amanda Grade explica como se escreve “avó e avô”. Num primeiro momento, surgem algumas dificuldades com a interpretação do acento circunflexo. Amanda desenha um bonequinho, e na cabeça de um senhor com cajado, coloca um chapéu. Tudo se torna perceptível. E, assim, com arte e engenho, se ergue o puzzle das letras que formam palavras e das palavras que fazem frases. De resto, o ensino de qualquer disciplina, seja língua portuguesa ou matemática, geralmente tem como suporte a leitura de uma história. Quando a professora sente que os alunos tropeçam numa palavra desconhecida, dá a volta ao texto e as crianças vão atrás da criatividade. A professora de língua gestual, Patrícia Ribeiro, ensina as regras e a gramática de uma disciplina que não deve ser confundida com mímica.
“O que diz o meu filho?”
A escola EB1, JI, nº4 da Penha – integrada no agrupamento de escolas João de Deus – dispõe ainda de aulas de terapia da fala e terapia ocupacional aos alunos de educação especial oriundos de toda a região: de Aljezur a Vila Real de Santo António, passando por Lagoa e Albufeira. “Nesta escola somos uma família”, sintetiza Raquel, declarando: “Ser professora de educação especial é uma paixão.” A opção por esta área de ensino, recorda, começou durante o estágio, quando ainda frequentava a faculdade.
“Apanhei uma criança cega e surda.” Decorridos mais de uma dezena de anos, mantém a “motivação” do início da carreira. Porém, o trabalho dos docentes não se esgota na sala de aula. “Tenho pais que me telefonam a qualquer hora, aflitos, perguntando: o que diz o meu filho, que eu não o entendo? ” Nessas circunstâncias, recorre à internet para dar sugestões. “Conhecemos um pouco da história de vida de cada aluno, e os pais contam connosco para os apoiar”, enfatiza. O director Carlos Luís conclui: “Esta é mesmo uma escola singular, e lá fora quase não se sabe que nós existimos.”
O agrupamento escolar João de Deus, em Faro, é o único na região para a educação bilingue (Língua Gestual e Língua Portuguesa) para surdos. Sobre o sucesso escolar alcançado, Carlos Luís dá o exemplo de duas alunas, com surdez profunda, a frequentarem o curso de Economia na Universidade do Algarve. Mas, logo a seguir, lembra os casos de integração de dois trabalhadores da casa. Daniel, assistente operacional, surdo (faz leitura labial), e é aluno de mestrado. O telefonista, Ricardo Martins é cego, músico e cantor, com passagem pelo Festival da Canção. O agrupamento escolar dispõe de cinco intérpretes de língua gestual portuguesa, mais seis docentes de língua gestual e oito professores de educação especial. Aos pais são ministradas aulas de formação em língua gestual, mas tem sido baixa a frequência. A maioria reside em zonas distantes, e não há transportes públicos compatíveis com estas aulas abertas. Com passos lentos e seguros, os professores ensinam os alunos a aprender a olhar o mundo que os rodeia. “Então, vamos lá…”, anuncia a professora. Vai começar mais uma aula. Sumário: “Continentes e oceanos.” Raquel Antunes começa por fazer o gesto do “C”, segue-se o “O”, …. e assim letra a letra o desconhecido vai ganhando forma. “Para a semana, vou entrar no ciclo da água, mas a seguir vou ter que voltar atrás para eles irem memorizando”, observa. A professora pede para localizar no mapa a Oceânia. A confusão com Oceano, pode estar iminente. João hesita um pouco. A colega Diana sai em seu socorro, fazendo o gesto de um canguru para o ajudar a situar no espaço
geográfico da Austrália. Resposta certa, sorrisos de agradecimento e camaradagem.
Esta escola recebe alunos surdos quando ainda são bebés, logo desde os 18 meses. Não é por acaso que, à entrada de uma das salas, lá está o muda-fraldas, e muitos bonecos para a terapia ocupacional. À medida que vão adquirindo competências linguísticas, diz o director, “vão ficando mais independentes, e mais integrados com os alunos ouvintes”. Num contexto em que se debate o regresso (ou não) às salas de aula, Carlos Luís é peremptório: “O interesse do aluno tem de estar em primeiro lugar, sempre o supremo interesse da criança.” Porém, esclarece, alguns encarregados de educação, perante o actual estado de pandemia, “por razões de saúde, optaram por deixar os filhos em casa”.
A surdez do professor
José Cardoso forma equipa com Raquel Antunes. Ela ensina os continentes e oceanos, ele empresta experiência e conhecimento da língua gestual para que o estudo possa prosseguir. A surdez surgiu-lhe aos cinco anos, quando brincava com a neve na serra da Estrela, onde nasceu. “Fiquei com febre, dor de garganta e ouvidos”, evoca. No hospital de Seia, onde foi socorrido, recebeu um remédio que teve
efeito contrário ao pretendido pelo médico. “O medicamento estava estragado – 17 pessoas ficaram surdas ou cegas, mas não houve mortes”, refere. Passou quatro meses internado no hospital universitário de Coimbra.
Os nove anos seguintes, sublinha, “foram passados a treinar, treinar, a aprendizagem da língua gestual”. Com muita força de vontade, recuperou parcialmente o ouvido. Agora, desde que o interlocutor fale de forma pausada, consegue responder. “Estou a concretizar um enorme desejo, eu queria ajudar as crianças e os pais a superar as dificuldades.” O director da escola chama a atenção para a alteração da expressão do rosto do professor, quando confidencia os sonhos. “Os olhos não mentem”, observa. A emoção obriga a fazer ponto final na curta conversa. Amanda Grade ensina de máscara de pano na boca: “Sou uma doente de risco”, justifica. A professora de língua gestual, Patrícia Ribeiro, usa viseira. “Quem trabalha com crianças tem de trabalhar por gosto, e quem trabalha com educação especial, sobretudo com surdos, esse gosto ainda se intensifica mais”, diz. Decorreram apenas três dias desde que deu a última aula presencial, mas a escola não lhe saiu do pensamento. “Passei o fim-de-semana a dar dicas aos pais, para os ajudar a preparem os filhos para a aula de matemática.
Cerca de dezena e meia de alunos frequentam as aulas presenciais. No total são meia centena. Os restantes ficaram em casa, por opção dos pais.
Em casa, nenhum dos pais sabe língua gestual. A comunicação com os filhos faz-se por mímica, improvisada nas dificuldades quotidianas. Por conseguinte, quando a criança chega à escola “a língua gestual passa a ser a sua primeira língua”. Por vezes, vivem-se momentos de stress. “Estes alunos são uns heróis, verdadeiros heróis”, elogia. “Vinha aí pela rua a andar e pensei – estou cheia de saudades destes miúdos.” A colega Patrícia, docente de língua gestual, faz um intervalo. Os pais de uma aluna de Armação de Pêra, em dificuldades, pedem auxílio. “Concordamos todos que a menina corria mais riscos nas aulas presenciais, por isso, ficou em casa”, justifica Amanda. A maioria dos alunos tem outras patologias associadas à surdez.
Por fim, Carlos Luís adianta que vai propor à câmara de Faro que mude o nome da escola, ligando o estabelecimento de ensino ao cavalo-marinho, símbolo da ria Formosa. De resto, dois animais desta espécie, pintados de cores garridas, já preenchem toda a fachada lateral do edifício. “Queremos que esta seja uma escola diferente, por dentro e
por fora”, justifica, recordando um episódio ocorrido no Verão passado. “Desafiei os professores a pintar a escola. Houve pessoas que não gostaram da ideia e até fizeram queixa de mim ao ministro da Educação”. O resultado, conta, foi “uma mudança radical na imagem de uma escola que tinha um ambiente pesado. Hoje recebemos elogios de escolas estrangeiras, nossos parceiros em projectos de educação especial”. Em altura de pandemia, a escola termina depois do almoço. A carrinha parte e Alexander ainda chega a casa à hora do lanche. Quando a vida regressar ao normal, só 13 horas depois de acordar volta a ver os pais.